para Maria da Penha
Pensava que os irmãos que corriam pela casa eram iguais a ela. Que ela era igual a eles. Que todos experimentavam o mundo da mesma forma. Não se sabia diferente. Os pais diziam cuidado, ela não vê... Mas o que era ver? Curioso. Primeiro precisou aprender o que significava ver para depois compreender o que representava não ver. Mas não foi simples assim, como uma frase após a outra, como uma sobreposição coordenada e clara ou como um desdobrar natural de causa e efeito. O que continha o ver? O que sua ausência deixava de abarcar?
Menina ainda suspeitou que sua vida seria de muitos nunca. Nunca. Nunca saberia um pôr-do-sol. O céu em múltiplas cores quentes pedindo silêncio para a beleza absoluta existir. Nunca as enseadas, nunca a cachoeira. Nunca uma palmeira. Nunca um beija-flor.
Moça suspeitou seu corpo. Pêlos. Como era antes sem os pêlos e como seria agora? Seios. Era lisinho como parecia agora? De que forma estas novas se uniam e a transformavam nesta outra que ela apenas e sempre conhecera pelo toque?
As colegas se arrumavam diante do espelho (espelho?): bota roupa, troca sapatos, tira echarpe, combina cores. E eu? Está bom assim? As outras diziam sempre que sim sem na verdade dar muita atenção, como se menina, cega, não comportasse vaidade. O descaso doía. Não via e também não era vista. Sentia o cheiro da maquilagem: batom de uva, base açucarada, pó de fragrância suave. E as sombras... o que eram sombras? Que efeito surtiam sobre as pálpebras, sobre os olhos? Olhos. Olhos, você entende? As colegas se contemplavam diante do espelho. Ajeitavam-se. Melhoravam-se. Eu sou mulher e jamais conhecerei meu rosto.